Ai meus ricos santinhos que grande desgraceira que aqui vai na aldeia da vossa Beata que até parece que os demónios se juntaram todos aqui p'ro dia das bruxas.
Nem tenho tido cabeça para responder às vossas cartinhas, já para não falar do meu computador que ainda está p'ra consertar e que me priva deste convívio com vossemecês que em boa hora me apareceram na minha vida, valha-os Deus Nosso Senhor.
Foi assombração pela certa e até menina de Azul e Verde o adivinhou que até parece a menina Carmenzita a ler as mãos.
Primeiro foi a zanga com o meu Zé que aproveito para vos dizer que está mais manso, porque a gente quanto mais se baixa mais se vê o dito e eu como não curvei as costas, salvo seja, teve ele que baixar a crista, porque aqui em casa não cantam galos porque também não há galinhas, que é como quem diz.
Depois e isto sim é obra do diabo, foi o escândalo que o Zé Palerma que é o sacristão cá da aldeia, deu esta semana na missa das sete da tarde, ao apanhar a Ti Angelina com a boca na botija, mais própriamente a roubar as esmolas quase da mão dele.
A pecadora, como é que eu vos hei-de contar isto, dava 20 cêntimos de esmola, mas escondia a moeda das vistas do Zé Palerma e tirava uma de 1 euro dizendo que era o troco. Ora o sacristão que é palerma só de nome e que já andava desconfiado porque as contas não lhe batiam certo vai p'ra mais de dois meses, estava à cautela e desta vez apanhou-a em flagrante delito, que salvo erro é como se diz e caso não seja o menino M Abreu cá virá emendar-me.
Como eu ia dizendo, o nosso Zé Palerma com a aflição, gritou com aquele vozeirão que Deus lhe deu:
- Alto e pára a missa que o troco está errado!
Nem imaginam a confusão que se instalou, com os fiéis a acusarem a safada da Ti Angelina e aos berros dentro da Igreja que mais parecia a feira que cá fazem aos domingos. Acreditem meus santinhos, nunca cá se viu uma coisa destas e até a missa não chegou ao fim, porque já mais ninguém tinha cabeça p'ra nada, tal era a raiva que se apossou de todos nós, que até parecia que tinham soltado o diabo.
Tenho andado muito alvoraçada com estas coisas todas e até me subiu a pressão, mas estão todos no meu pensamento e mesmo que eu vos escreva pouco, rezo muito por todos e não há dia nenhum em que não me lembre dos meus riquinhos filhos
Até qualquer dia se Deus quiser.
Beijinhos repenicados
Da vossa Beata da Aldeia
Estimados filhos
Como deveis imaginar toda a gente cá na aldeia está ao corrente da zanga com o meu Zé pois foi p´ra aqui o fim do mundo, só faltou chamar a guarda, o que nos valeu foi o santinho do sacristão que também não faz mais do que a sua obrigação que é ajudar o Sr. Cura a velar pelas almas, mas isso já eu vos contei da última vez que vos dei conta da minha vidinha e p'ra não me desviar da minha ideia, adiante que se faz tarde.
Ora, todos se acercam de mim, a consolar-me pelo sucedido e com palmadinhas nas costas lá me vão dizendo que aquilo foi o demónio que passou pelos olhos do meu homem ou até há quem tenha cismado que foi o vinho a falar em vez dele, mas eu ainda estou muito ofendida e enquanto me lembrar não lhe olho p'ra cara nem lhe dirijo a palavra, porque quem não se sente não é filho de boa gente e cá os meus paizinhos eram de grande respeito e tidos em muito boa conta.
Isto tudo para vos dizer, que o que me tem valido são os vossos cuidados comigo de tal forma que até mostrei ao Sr. Cura algumas das coisas que me têm escrito p´ra ele ficar a saber que comungar da vossa alegria tem sido uma bênção para mim.
Ai, meninos e não é que ele gostou tanto que até me incumbiu de vos fazer uns pedidos?
Então aqui vai:
Ao menino Abreu (que não tem aldeia) pede que, no intervalo dos processos do tribunal e já se viu que é oficial de justiça, o ajude a escrever uns sermões, porque jeito não lhe falta apesar de se ter desviado do caminho do Senhor à conta da tal ajudante de cozinheira era ele ainda moço.
À menina de Azul que agora também tem uma metade verde, manda dizer que gostava muito que ela escrevesse sobre a história da paróquia e que tem uma casa às ordens se ela não tiver onde ficar e que não se esqueça de trazer as suas bolachinhas caseiras.
À menina das Margaridas, pede muito que ajude a beata no arranjo das flores mas recomenda que ela venha com um vestido decente, não vá o diabo tecê-las e que não traga os tais comprimidos não vá dar cabo da vida descansadinha da aldeia.
Ao menino da Cara Laroca, que anda sempre numa correria de aldeia em aldeia, pede que traga a máquina das fotografias e que venha cá ensinar o Manel da Gaita a tocar concertina, p'ra ver se ele aprende de vez as notas sem desafinar.
Ao menino Lince, pede que vista a pele de cordeiro e que recolha as garras e traga uma garrafa de vinho p'ras tertúlias ou lá como ele lhes chama.
Ao menino Mariola de Vasconcelos caso ele disponha de tempo, pede que venha cá ensinar ao povo as suas artes e que traga o livro da tal senhora Florbela, que o mestre-escola coitadinho já lhe perdeu o jeito.
À menina Cristalina, manda dizer que gostava muito de a conhecer e que traga o livro dos milagres, aquele de capa azul e branca, para que se registe um dos últimos milagres de Fátima.
Ainda há mais pedidos do Sr. Padre Cura, mas fica para uma próxima que agora não disponho de mais tempo pois tenho que ir à vida e estou aqui ainda por caridade da minha vizinha, em casa alheia, que é como quem diz, em casa dela.
Até outro dia se Deus quiser.
Beijinhos repenicados
Desta que se assina
Beata da Aldeia
Boa noite meus santinhos
A vossa Beata tem muito o que vos contar depois destes dias todos em que não vos escrevi e sabe Deus que falta me fizeram as vossas cartinhas ainda p'ra mais estando eu de candeias às avessas com o meu homem que para vos dizer a verdade já não sei se ele ainda é meu ou se lhe dou um daqueles valentes pontapés e o mando p'ra casa da mãe dele, que por acaso até uma santa apesar de ser sogra.
Então não querem lá ver que o meu Zé que já era teimoso que nem o meu burro Jeremias agora mais parece que foi enxertado em corno de cabra desde que eu mudei para loira e me meti nestas artes porque cismou que a culpa destas mudanças todas é da Internete?
Diz que eu já não sou a mesma, e aí até lhe dou razão, porque eu dantes era morena e agora já não sou, que já não tenho tempo p'ra lhe olhar p'ra cara, e verdade seja dita que também já ando farta da cara dele e o pior de tudo e que me ofendeu cá na minha fé, é que rematou dizendo que ando descurando as minhas obrigações na Igreja.
Ai meninos fiquei vidrada fui-me a ele e não vos conto nem vos digo que quase parti o rolo da massa tanto lhe cheguei ao pêlo, foi preciso o Zé Palerma que é o sacristão e tem-me em muito boa conta, vir apartar-nos p'ra não se dar uma desgraça como aquelas que se vêm todos os dias na televisão daquela menina que cada vez tem a boca mais alargada e que coitadinha teve azar numa operação que fez às bochechas da cara e lá estou eu a desviar-me da conversa.
No dia seguinte armou-se em macho e de vingança e ruindade foi-se ao meu rico computador que ainda ando a pagar todos os meses e rachou-o de alto a baixo.
Deixei de lhe falar e não me venham com esses sermões do perdão, que há coisas que custam a engolir e eu apesar de ser devota e temente a Nosso Senhor, desta vez não sei não qual vai ser o fim disto.
Meninos estou aqui a escrever-vos por caridade da minha vizinha Ti Maria Vacas, que coitadita vacas é o que ela já não tem, porque lhe morreram todas, diz-se para aí que foi por serem loucas, mas eu cá nunca dei por isso mas adiante e então vim aqui à dela, como estava dizendo porque o meu computador está a consertar e nem sei quando mo entregam.
Pronto meus filhos, tenho que me ir embora porque não estou na minha casa e não estou à vontade com os gaiatos da Ti Maria aqui à minha roda.
Não se esqueçam de me escrever porque ando muito precisada e rezem pelo meu Zé, p'ra ver se ele fica mais manso.
Beijinhos repenicados
Da vossa Beata da Aldeia
Ainda estou a caldos de galinha, melhor dizendo a caldos da minha Josefina que coitadinha lá serviu para algum proveito porque ovos já não punha vai para mais de um ano e assim vos digo que me encontro melhorzinha ou não fora o caso nem vos podia estar a escrever.
É verdade filhos do meu coração então não é que levei toda a santa noite a sonhar com as cores do vestido que se me pôs uma dor de barriga como há muito não tinha mais propriamente desde que fiz aquele esforço que me valeu uma quebradura no umbigo porque cismei que havia de dançar a noite inteira nas festas da Nossa Nossa Senhora da Agonia?
Nem vos conto as vezes que já corri para me aliviar e o meu Zé até foi à menina nova da farmácia pedir ajuda porque coitadinho verdade seja dita ele é muito meu amigo e se eu lhe for à frente ele vai logo atrás de mim, porque homem habituado a ter tudo feito é assim mesmo e a nossa afeição é para toda a vida como manda Nosso Senhor e disse o Sr. Cura quando nos casou.
Lá estou eu a divagar meninos mas graças aos santinhos que esta aflição me calhou hoje porque a menina Joana da aldeia dos sapos andou a oferecer à gente aqui da terra uns piaçabas novinhos em folha que são uma beleza e eu cá que sou muito de aproveitar as coisas, dei-lhe logo uma serventia que estou a ver que tenho que pedir ao meu homem para ir buscar mais.
É verdade que esta vossa Beata é uma mulher do campo e pouco dada a letras mas nunca chamei piaçá ao piaçaba como disse aquele menino que tem um grupo que cheira muito mal e até lhe chamam os fedorentos além de dizerem que são bichanos ou gatos ou lá o que é.
Com isto tudo meus anjinhos não tenho tido cabeça para pensar nas cores do malfadado vestido e se não ficarem ofendidos fica para uma próxima que também isto não é nenhuma sangria desatada.
Já me esquecia de vos contar recebi uma carta muito bonita que por sinal ainda não a li toda do nosso Anjinho protector,
São M Abreu
e por sinal já trazia o selo com o retrato dele, ora vejam lá que lindos caracóis e até sabe tocar e tudo, ai rico filho.
Aprendam a dizer piaçaba e até qualquer dia se Deus quiser
Beijinhos repenicados desta que se assina
Beata da Aldeia
PS: Desculpai-me mas hoje não tenho cabeça p'ra responder às vossas cartas que estou outra vez numa aflição à conta destas malditas cólicas
Bom dia queridos filhos
Hoje o meu Zé trouxe-me o jornal cá da região que salvo erro só aparece uma vez por semana e já não é mau porque dantes nem jornais nem televisão a gente tinha e por isso é que os filhos nunca acabavam de se fazer porque não havia distracções nenhumas a não ser aquelas que vossemecês sabem mas que eu por pudor não digo.
Ora eu que apesar de ser do campo sempre fui muito de querer saber as coisas apesar de não me meter na vida dos outros comecei a ler a primeira página porque é por onde se começa sempre e fiquei de boca aberta com esta noticia:
Fotografias, logótipos ou textos passam a poder figurar nos selos .
Uma fotografia de rosto, uma imagem das férias ou o retrato do bébé. A partir de agora os consumidores podem escolher o tema dos selos que enviam nas suas cartas. Os CTT apresentaram ontem, Dia Mundial dos Correios, o "meuselo", um serviço que torna possível a personalização da tarifa de correspondência.
Ai meus queridos que grande avanço que este mundo está a ter e pensei cá comigo porque já sabem que o meu homem nestas coisas não gosta nada de modernices e por isso nem vale a pena dizer-lhe nada, que agora é que a vossa Beata vai ser conhecida em todo o lado porque acreditem que assim que o Ti Carteiro cá chegar vou-lhe pedir para pôr o meu retrato nos selos porque agora como sabem é um ver se te avias com estas cartas todas.
Como o meu Zé tem aquele feitio que já todos conhecem e nas vizinhas não tenho confiança nenhuma porque há muitas invejas e quem vê caras não vê corações e ao Sr Cura falta-me a coragem porque ele tem coisas mais importantes para pensar queria pedir uma coisa aos meninos e meninas que era se me ajudavam a escolher a cor do vestido para eu tirar a fotografia que tem que ser especial porque andar sempre de rosa arroxeado também já estou farta.
Beijinhos a todos e não se esqueçam de pôr as vossas caras larocas nos selos para eu vos conhecer melhor
Desta vossa Beata da Aldeia
Meus ricos filhos
Antes de mais quero pedir muita desculpa por só agora responder às vossas cartas todas que eram tantas tantas que até o pobre do Ti Manuel que é carteiro cá da aldeia vai p'ra mais de 20 anos ficou de olhos esbugalhados e até teve que pedir ao compadre Ajuda que o nome já diz tudo para lhe carregar a sacola mas o Sr Cura chamou-me lá por causa das flores para o casamento da Ritinha e do Manuel que é já no domingo e por isso só agora aqui vim.
Ai riquinhos que me estragam com mimos e eu não sou merecedora de tanto até porque nem fiz nada de mais para estarem para aí com essas coisas todas mas que estou muito contente lá isso é verdade e cada vez gosto mais de todos.
Mas hão-de vossemecês pensar o que é que isto tudo tem a ver com o meu Zé e com o meu burro Jeremias mas devagar se vai ao longe e aguentem um bocadinho que eu já conto tudo.
Então lá vai.
O meu burro apesar de ser burro é mais esperto que muita gente que diz que pensa e é como se fosse da família só falta dormir cá em casa que isso eu nunca deixei porque é uma grande sujeira e não se aguentava o cheiro mas tem um grande defeito tal qual o meu homem que eu até costumo dizer que ele é teimoso como um burro.
Ora o ano passado viveu cá um mestre-escola que coitadinho até teve sorte porque foi colocado a 350km da aldeia dele mas sempre foi melhor do que ficar sem trabalho e que por via disso mesmo cismou que havia de ensinar à gente estas coisas da Internete para ocupar os fins-de-semana que eram quase todos em que não ia matar saudades à terra dele e então como eu estava dizendo lá fui eu e mais umas vizinhas aprender as artes que é como a gente chama a isto aqui na aldeia.
O meu homem que quase nunca fala, botou palavra e disse que era para eu não ir porque isso não eram coisas de mulher casada e disse mais:
- Mulher minha não vai por aí!
Até me lembrou uma coisa que eu ouvi da boca do tal mestre- escola e que me ficou no ouvido até hoje e que se a memória não me falha foi um tal de Sr. Régio que morava noutra aldeia e que pelos vistos era senhor do seu nariz que dizia mais ou menos o mesmo mal comparado valha-me nossa Senhora.
O que ele me foi dizer meu ricos meninos. Então eu que nunca olhei p'ro lado que sempre lhe arranjei a janta a tempo e a horas trato-lhe da roupa toda que ele anda sempre num brinco e agora estava a querer mandar em mim?
Lembrei-me logo do meu burro que quando a gente o puxa para um lado ele vai para o outro e fiz o mesmo que ele.
Em santa hora me veio essa lembrança porque se não fosse o meu burro eu não estava aqui a escrever aos meus santinhos.
Eu que sou mulher séria e não sou de andar na taberna como eu sei que há p'ra aí muitas já para não falar de outras coisas do demónio que até me fazem arrepios só de pensar nelas, sou devota e até ajudo o Sr Cura, posso não saber muito bem para onde vou mas sei que não vou por onde ele me mandar.
Tenho dito
Beijinhos a todos e até qualquer dia se Deus quiser
Desta que se assina Beata da Aldeia